quarta-feira, 29 de agosto de 2012

Jornal do Campus (USP) e a PMESP

 
 
Mortes recentes aquecem debate sobre a PM
por  Ruan de Sousa Gabriel e Victor Augusto de Souza 

Comandante-geral reafirma papel protetor da corporação, mas, segundo especialistas, Estado continua violando os direitos humanos

A Polícia Militar ganhou destaque nas páginas dos noticiários no final de julho: agentes da corporação foram acusados de participar de assassinatos. A imprensa começou a dar maior atenção para crimes envolvendo policiais após a morte do publicitário Ricardo Prudente de Aquino, no dia 19 de julho, mesmo dia em que PMs atiraram 27 vezes num carro em Santos, matando Bruno de Vicente de Gouveia. A partir daí, mais crimes do gênero surgiram, como o noticiado pelo O Estado de S. Paulo em 1° de agosto, no qual um pai investigou por sua conta a morte do filho e do amigo dele, resultando na prisão de cinco PMs. No dia 25 de julho, o Ministério Público Federal (MPF) já havia anunciado a intenção de entrar com uma ação civil pública pedindo a destituição do comando da corporação, alegando a perda de controle da tropa.

Um dia após a declaração do MPF, o comandante geral da PM, coronel Roberval Ferreira França, publicou em sua página do Facebook uma “Carta ao Povo de São Paulo e do Brasil”. Segundo o comandante, “para quem pergunta se a população confia na Polícia, os números falam por si”, elencando em seguida uma série de números e estatísticas sobre a atuação da PM em 2011, como o total de apreensões de droga e prisões em flagrante. Disse ainda que “tudo isso parece incomodar muito algumas pessoas, que tentam, por várias medidas, atacar e enfraquecer uma das mais bem preparadas e ativas polícias do nosso país”, e que a PM “continuará sendo a força e a proteção das pessoas de bem que vivem em nosso Estado”.

Embora o assunto tenha ganhado maior destaque no final de julho, já no dia 5 uma matéria da Folha de São Paulo dava conta de que a letalidade das Rondas Ostensivas Tobias Aguiar (ROTA) aumentou do ano passado para cá. O tenente-coronel Salvador Modesto Madia, comandante da corporação e um dos acusados pelo Massacre do Carandiru, em 1992, quando perguntado sobre o aumento, respondeu: “Não me importo com números, mas, sim, com a legalidade dessas mortes”.

Para Carolina Ricardo, coordenadora da área de gestão da segurança pública do Instituto Sou da Paz, uma OSCIP (Organização da Sociedade Civil de Interesse Público) que trabalha pela prevenção da violência no Brasil, “é preciso sim se preocupar com os números, eles denotam um fenômeno importante a se olhar, a partir dos números é que você pode olhar a gestão da sua corporação”. Além disso, ela acredita que “esse tipo de declaração preocupa” e que, quando se discute violência policial, “o recado que o alto comando passa é fundamental”, incluindo aí também o governador do Estado e o Secretário de Segurança Pública.

Em se tratando de números, os dados da Secretaria de Segurança Pública (SSP) sobre a letalidade policial dão conta que no segundo trimestre de 2012, de abril a junho, foram 79 mortos por policiais civis e militares em serviço, 76 destes mortos por PMs. Carolina ressalta que é um avanço a liberação dos dados dos mortos pela polícia pela SSP, o que não acontece em outros estados do país, salvo o Rio de Janeiro, permitindo a melhor realização de análises. Nesse sentido, o Instituto Sou da Paz produziu um relatório sobre os dados do segundo semestre, contando com uma sessão “A Polícia continua matando muito”. O relatório problematiza um argumento usado por autoridades da SSP para justificar a letalidade policial: a polícia estaria chegando mais rapidamente aos locais dos crimes, havendo assim mais confronto e, por consequência, mais mortes. No entanto, o que se observa é justamente o contrário: “nesse 2º trimestre de 2012, o número de policiais feridos em confrontos (31) é o menor dos últimos 13 anos. Se estão acontecendo mais confrontos, seria de esperar que o número de policiais feridos aumentasse, mas ele caiu 34% em relação ao 2º trimestre de 2011”.

O relatório termina com uma sessão chamada “O que não fazer diante desse quadro”. Uma das atitudes que não devem ser tomadas é “Estimular a violência policial”. Ele ressalta que é inaceitável atacar e matar policiais, mas que isso não pode servir como carta branca para que a polícia aja com violência, “adotando uma lógica de confronto digna de faroeste, mas incoerente com um Estado Democrático de Direito”.
 
O silêncio sorridente diante da chacina

Dos 564 mortos por arma de fogo no Estado de São Paulo entre 12 e 21 de maio de 2006, 505 eram civis (leia também a entrevista com Débora Maria da Silva, fundadora das Mães de Maio). Os outros 59 eram agentes públicos. Os dados são do relatório final da pesquisa “Análise dos Impactos dos Ataques do PCC”, realizada pelo Laboratório de Análise da Violência da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (LAV-UERJ). O relatório aponta que o número de mortes registradas durante os dez dias de maio de 2006 foi de três a quatro vezes superior ao registrado no mesmo período de 2005.

A maioria dos agentes públicos morreu nos primeiros dias de ataque, entre 12 e 14 de maio. Já a maior parte dos civis foi morta a partir do dia 14, Dia das Mães, quando 107 civis foram assassinados. A proporção entre policiais e civis mortos aumentou no decorrer dos dias. No dia 17, para cada policial morto havia 20 civis mortos, o que reforça a suspeita de que houve represálias às ações do PCC. 118 civis morreram em confrontos com a polícia, outros 53 foram executados sumariamente por grupos encapuzados, o que indica a atuação de grupos de extermínio.

O advogado, doutorando em Direito Constitucional pela PUC-SP, e ex-professor de Direitos Humanos na Academia de Polícia Militar do Barro Branco (APMBB), Dimitri Sales, cita versos da canção “Haiti”, de Caetano Veloso e Gilberto Gil, ao lembrar a indiferença (“o silêncio sorridente de São Paulo diante da chacina”) do poder público e da sociedade frente aos assassinatos de civis, em sua maioria jovens do sexo masculino, solteiros, de baixa escolaridade e sem antecedentes criminais, cometidos por PMs. O Ministério Público Estadual (MPE) decidiu pelo arquivamento da maioria dos processos relativos aos crimes cometidos por polícias durante maio sob a alegação de “falta de provas”.

Herança da ditadura

Segundo Sales, a decisão do Ministério Público Estadual pelo arquivamento dos processos é “vexatória”. Ao aceitar que os homicídios cometidos pela polícia militar fossem registrados como “resistência seguida de morte”, o MPE “atribui à vítima a responsabilidade de sua própria morte e deixa impunes os verdadeiros assassinos”. O crime “resistência seguida de morte” não existe no Código Penal brasileiro, e há um esforço  da Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senasp) para que a designação deixe de ser usada nas ocorrências de homicídios cometidos por polícias.

O advogado ainda argumenta que a impunidade é uma herança da ditadura militar. A demora do Brasil em investigar e punir os militares que violaram os direitos humanos e cometeram crimes de lesa-humanidade – imprescritíveis – durante o estado de exceção contribui para que aqueles que matam hoje, sob a tutela do Estado democrático, permaneçam impunes.

Dimitri ainda falou que, ao contrário de outros países latino-americanos, como a Argentina, o Estado brasileiro resiste em aceitar algumas resoluções de cortes internacionais, como a determinação da Corte Interamericana de Direitos Humanos que condenou o Brasil a investigar e punir os responsáveis pela operação empreendida pelo Exército brasileiro entre 1972 e 1975 para erradicar a Guerrilha do Araguaia. O Brasil pode, ainda, passar pelo constrangimento diplomático de ter sua Lei de Anistia revisada por um tribunal internacional.

Sales também destaca a importância da Comissão Nacional da Verdade, instaurada pela presidenta Dilma Rousseff para investigar as violações dos direitos humanos cometidas pelo Estado brasileiro entre 1946 e 1988, ainda que ela não tenha poderes de punir os responsáveis pelos crimes da ditadura. “O mínimo que precisamos saber é a verdade: quem eram os torturadores, os médicos que acompanhavam as sessões de tortura, os financiadores do golpe, qual foi o papel de setores da sociedade civil”, afirma o advogado, que ainda traça um paralelo entre o período autoritário e aumento da violência policial nos últimos meses: “Mais uma vez o Estado tem se colocando acima das leis e, em nome de um inimigo comum – no passado, o comunismo, hoje, a violência urbana – torna-se o principal violador dos direitos humanos, quando deveria preservá-los”.

Desmilitarização?

A discussão sobre a desmilitarização das polícias é assunto que volta à tona quando casos de violência envolvendo seus agentes ganham visibilidade. Segundo Carolina Ricardo, o problema com essa discussão é saber exatamente o que está sendo proposto. “A militarização está em muitos lugares. Desde o fato de, pela Constituição, a polícia militar figurar como força reserva auxiliar do Exército, à forma fardada e ritualística da polícia e ao seu regulamento disciplinar, em que o policial pode ser punido disciplinarmente porque está com o coturno sujo”, pontua. O respeito à hierarquia e à disciplina, bastante característico de organizações com estrutura militar, também pode ser colocado junto a esses aspectos. A pesquisadora afirma que “em alguma medida essa questão da disciplina ajuda a dar pronta resposta para algumas coisas” para as quais a polícia é convocada e que não envolvem situações necessariamente criminais, como a resolução de pequenos incidentes e conflitos. Não que o militarismo não tenha problemas, pelo contrário: a formação militar é muito baseada na repetição, não havendo espaço para os policiais trazerem suas dúvidas e mesmo seus temores. Além disso, a estrutura dificulta a transparência, na medida em que, por exemplo, um soldado da ponta não tem permissão de conversar livremente sem a autorização de seus superiores.

Diante desse quadro, o que fazer? “Tentar entender dentro da estrutura militar onde cabem algumas transformações e que podem ter impactos significativos”, afirma Carolina. Por exemplo, promover mudanças no regimento disciplinar, para que se puna mais o mau uso da força do que o descumprimento de aspectos ritualísticos, criar espaços institucionais para estudos de caso, integrar as carreiras de modo a permitir que os soldados da ponta tenham perspectiva de crescer na carreira. Ela acredita que essas mudanças em aspectos pontuais podem, inclusive, ter mais sucesso em serem efetivadas do que a desmilitarização das polícias.

Formação policial

Dimitri conta que, nas aulas que ministrava no Barro Branco, procurava apresentar aos alunos uma visão de como se configuravam os Direitos Humanos no Âmbito do Direito Internacional. No currículo adotado pela Academia, há tópicos específicos para a discussão dos direitos das minorias raciais, mas outros temas como a diversidade sexual e a violência de gênero ainda não são discutidos em profundidade.

O advogado acredita que uma sólida formação, não somente em Direitos Humanos, mas também em elementos da Filosofia, do Direito e da Psicologia, são essenciais para a formação de um policial voltado para a proteção da população e para combater a cultura de valorização do golpe militar, que ainda persiste no interior das forças armadas. Sintomaticamente, uma das 18 estrelas presentes no brasão-de-armas da Polícia Militar do Estado de São Paulo, que são “representativas dos marcos históricos da corporação”, segundo o site da PM, celebra a “Revolução” de março de 1964.

No último dia 9, o jornal O Estado de S.Paulo divulgou que a Polícia Militar, em parceria com o Núcleo de Estudos da Violência (NEV) e o Núcleo de Pesquisas de Políticas Públicas (NUPPS) – órgãos ligados à Universidade de São Paulo (USP), pretende desenvolver uma nova matriz curricular para a formação de praças e oficiais. Procurada pela reportagem, a assessoria de imprensa do NEV afirmou que o convênio que estabelece a parceria ainda não foi assinado e não quis comentar o assunto.
 

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