sábado, 4 de abril de 2020

PROGRAMA EMERGENCIAL DE MANUTENÇÃO DE EMPREGO E RENDA - UM RESUMO




MP 936/2020


Em 01/04/2020, o Governo Federal publicou a Medida Provisória n. 936/2020 com a finalidade de suprir uma lacuna deixada pela retirada do artigo 18 da MP n. 927/2020.

A atual medida provisória tem como objetivo principal preservar o emprego e a renda do trabalhador com carteira assinada, bem como garantir a continuidade das atividades laborais e empresariais durante o período de calamidade pública e de emergência de saúde pública decorrente do coronavírus.

Resumidamente, esta medida permite a adoção de duas medidas principais e não cumulativas.

A primeira é a redução proporcional da jornada de trabalho e do salário do trabalhador que poderá perdurar por até 90 dias. A segunda medida é a suspensão temporária do contrato de trabalho pelo prazo máximo de 60 dias. Estas medidas se aplicam somente aos trabalhadores com carteira assinada.

Vejamos cada uma, resumidamente.

Para que seja dado início a redução proporcional da jornada de trabalho e do salário, deve o empregador acordar com o funcionário celetista tal medida, sendo que tal acordo individual deve ser feito por escrito e com antecedência mínima de 02 dias corridos antes da redução. Esta redução somente pode ser feita em três faixas proporcionais (25%, 50% ou 75%). Nestes casos o trabalhador receberá uma parte de seu salário diretamente de seu empregador e outra por meio do Benefício Emergencial do Emprego e Renda (devido a partir da data de início da redução, com primeira parcela paga em até 30 dias — se o empregador comunicar a redução ao Ministério da Economia em 10 dias — e perdurará enquanto persistir a redução da jornada de trabalho - a jornada de trabalho deve voltar ao normal em até 2 dias depois do prazo acordado individualmente ou por acordo coletivo).

Como fica seu salário durante o período de redução da jornada ?

Para saber o quanto você irá receber, você precisa fazer um pequeno cálculo. Veja um exemplo:

• Se você ganha até 3 salários mínimos (R$ 3.117,00) e teve a redução de sua jornada em 70%, seu empregador continuará lhe remunerando em 30%, pois você continuará a trabalhar 30% de sua jornada de trabalho, ou seja, você receberá R$ 900,00 do seu patrão. Neste caso, sua renda será complementada pelo Benefício Emergencial, na proporção de 70% do valor do seguro desemprego para sua faixa salarial (acima de R$ 2.666,29), ou seja, 70% de R$ 1.813,03 que é igual a R$ 1.269,12. Seu salário, então, será de 2.169,12. O mesmo raciocínio deve ser aplicado para as demais faixas de redução (25% ou 50%).

• Se você tem renda entre R$ 3.117,00 e R$ 12.202,00, sua jornada pode ser reduzida em 25% por meio de acordo individual. Se a redução for de 50% ou de 75%, será necessário realizar um acordo coletivo. O cálculo do salário observa a mesma regra anterior, considerando o valor do seguro desemprego para a respectiva faixa salarial.

• Para quem ganha acima de R$ 12.202,00, a redução em qualquer percentual pode ser feita por meio de acordo individual se o empregado tiver diploma de nível superior. Caso contrário, a redução somente será feita por acordo coletivo.

Em todos estes casos, deve o empregador preservar o salário hora de trabalho, sendo certo que o recebimento do Benefício Emergencial não atrapalha a percepção do seguro-desemprego futuro, desde que se atenda os requisitos da Lei n. 7.998/1990, no momento da sua dispensa.

Por sua vez, a suspensão do contrato de trabalho durante o estado de calamidade somente poderá ser feita pelo prazo máximo de 60 dias (ou em dois períodos de 30 dias) e será realizada por meio de um pacto individual entre trabalhador e patrão, com antecedência mínima de 02 dias corridos. Neste caso, o salário do empregado será pago pelo Governo, por meio do Benefício Emergencial e corresponderá a 100% do valor do seguro desemprego, desde que a empresa tenha tido, em 2019, receita bruta inferior a R$ 4.800.000,00.

Se a receita bruta for superior a esse valor (em 2019), ela deve pagar 30% do salário do empregado, que será somado a 70% do valor do seguro desemprego, de acordo com cada faixa salarial.

É preciso saber que durante a redução ou suspensão, o empregado terá estabilidade durante e após o termino do evento (por prazo igual a suspensão/redução). Exemplo: durante a suspensão de 60 dias, o funcionário não poderá ser demitido e após, somente depois de decorrido igual período.

Fique sabendo também que durante o período de suspensão do contrato de trabalho, nenhum serviço poderá ser prestado ao patrão. Se isto acontecer (por trabalho remoto, a distância etc.) a suspensão será descaracterizada e o empregador deverá voltar a pagar a remuneração do trabalhador e os encargos sociais de todo o período, além de sofrer outra penalidades legais ou previstas em convenção ou acordo coletivo.

IMPORTANTE: Estas regras se aplicam somente aos trabalhadores com carteiras assinadas. Não se aplicam aos trabalhadores intermitentes, os quais receberam R$ 600,00 pelo prazo de três meses.

FONTE: Scudeller de Almeida Advogados (www.scudellerdealmeida.com.br)

sexta-feira, 27 de março de 2020

CLT e Factum Principis




CLT OBRIGA O PODER EXECUTIVO A PAGAR ENCARGOS TRABALHISTAS DE EMPRESAS?


SERÁ QUE É VERDADE?


Em recente manifestação pública (27/03/2020), o presidente da República Jair Bolsonaro afirmou que existe dispositivo legal na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) que permitiria ao empresariado brasileiro obrigar o Poder Executivo (estadual e municipal) em arcar com o pagamento dos encargos trabalhistas, caso seu estabelecimento tivesse sido fechado por determinação governamental.

Será que tal afirmação procede? Veremos.

Inicialmente é necessário verificar o próprio texto legal. O que consta nele:

Art. 486 - No caso de paralisação temporária ou definitiva do trabalho, motivada por ato de autoridade municipal, estadual ou federal, ou pela promulgação de lei ou resolução que impossibilite a continuação da atividade, prevalecerá o pagamento da indenização, que ficará a cargo do governo responsável.

Toda esta relação parece muito simples, mas, na verdade, não o é. Referida questão é muito polêmica, tanto que o Tribunal Superior do Trabalho, em face do pronunciamento presidencial, se prepara para se manifestar sobre a questão.

Referido artigo diz respeito a hipótese conhecida como factum principis, ou, o fato de príncipe, que nada mais é do que a ocorrência de uma espécie de força maior. Nesta hipótese, o evento imprevisível que pode onerar excessivamente uma empresa ou, até mesmo determinar seu fechamento, decorre de uma determinação governamental. Há, portanto, forte semelhança com o que vem acontecendo em muitos estados e municípios brasileiros.

Na atual situação, a determinação governamental para o combate a pandemia do COVID-19 pode realmente ser entendida como a ocorrência do fato de príncipe, caso venha a causar tremendo impacto na atividade da empresa, que a deixe totalmente debilitada. Em síntese: a administração pública, que não pode intervir na atividade empresarial ao ponto de lhe causar prejuízos, vem, neste momento, assim se comportando e, destarte, eventuais prejuízos decorrentes se seus “decretos de quarentena” podem, realmente, obrigá-la a proceder indenizações futuras. Esse é um quadro possível.

Atualmente o meio jurídico se encontra dividido em suas opiniões, em relação a interpretação do artigo 486 da CLT. 

Há quem defenda que referido dispositivo não se aplica na situação enfrentada pelo Brasil, haja vista que estamos diante de uma grave crise de saúde (calamidade pública na área de saúde), cujas regras de profilaxia e combate decorrem de orientações da Organização Mundial de Saúde (OMS) e que buscam salvar vidas humanas. 

Outros, por sua vez, defendem que tal regra, por ser de 1951 (introduzido no ordenamento jurídico nacional no contexto da Constituição de 1934), reflete os problemas que ocorriam naquela época e que dizia respeito tão somente ao término de uma atividade por determinação estatal, ou seja, todo o empreendimento era inviabilizado pelo Executivo, o que não ocorre na atual crise. Alguns ainda afirmam que os atuais “decretos de quarentena” não configuram o fato de príncipe previsto no artigo 486 da CLT, pois neles estão encartados alternativas ao fechamento de uma empresa.

Entretanto, há juristas que defendem que os "decretos de quarentena" emitidos pelo Executivo, dos três níveis governamentais, são suficientes para que o empresário que teve inviabilizado seu negócio possa interpor ação judicial contra o governante, de forma a obriga-lo a pagar as verbas indenizatórias de seus empregados (FGTS, como por exemplo).

Tal questão é presente nos tribunais trabalhistas. Veja, por exemplo, o que pensa o Tribunal Superior do Trabalho no tocante ao fato de príncipe:

AGRAVO DE INSTRUMENTO. RECURSO DE REVISTA INTERPOSTO ANTES DA LEI N . º 13.015/2014. DESAPROPRIAÇÃO DE IMÓVEL RURAL PARA FINS DE REFORMA AGRÁRIA. FACTUM PRINCIPIS. CARACTERIZAÇÃO. INTELIGÊNCIA DO ART. 486 DA CLT. No caso vertente, de acordo com o quadro fático delineado pela decisão regional, a rescisão do contrato de trabalho dos reclamantes deu-se por meio de ato da Administração Pública (desapropriação de imóvel rural para fins de reforma agrária), bem como que os proprietários do imóvel não concorreram para a desapropriação do imóvel e não tiveram como evitá-la. Esta Corte, em casos análogos, tem admitido a responsabilidade indenizatória do ente estatal com fulcro no art. 486 da CLT, quando restou comprovado que empregador não concorreu, direta ou indiretamente, para o encerramento das atividades empresariais. Nessa linha, descabe falar em violação 486 da CLT, tendo em vista a conclusão do acórdão regional de que o empregador não concorreu para a desapropriação do imóvel, razão pela qual restou caracterizada a hipótese de factum principis prevista no dispositivo legal referenciado. Precedentes. Agravo de instrumento a que se nega provimento. (TST - AIRR: 17644420135030038, Relator: Maria Helena Mallmann, Data de Julgamento: 20/09/2017, 2ª Turma, Data de Publicação: DEJT 29/09/2017)

Aprecie mais uma decisão:


COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO. INDENIZAÇÃO DECORRENTE DE FACTUM PRINCIPIS. -O artigo 486, § 3º, da CLT foi introduzido no ordenamento jurídico nacional no contexto da Carta Magna de 1934, quando ainda não era reconhecida, constitucionalmente, a competência desta Justiça Especializada para examinar causas em que figurassem como partes os entes da Administração Pública. Todavia, a análise da evolução constitucional das atribuições da Justiça do Trabalho conduz ao entendimento de que a CF/88 retirou os fundamentos de validade daquele dispositivo celetário, na medida em que lhe foi atribuída, pelo artigo 114, a competência para dirimir controvérsias decorrentes da relação de trabalho entre Entidade de Direito Público e trabalhadores. Restando configurado que o fundamento do pedido está assente na relação de emprego - já que o ente público, na ocorrência do factum principis, se estabelece na relação processual como litisconsorte necessário, participando efetivamente da relação processual e diante da natureza trabalhista da indenização perseguida, é de se concluir que compete à Justiça Obreira apreciar tanto a questão relativa à caracterização do factum principis, como o pleito de indenização, a cargo do governo responsável pelo ato que originou a rescisão contratual. Violação do artigo 114 da Constituição Federal de 1988.-(TST-RR-596.021/1999.6, Ministro Renato de Lacerda Paiva - 2ª Turma, DJ-16/04/2004). Recurso conhecido e provido. (TST - RR: 6053655219995065555 605365-52.1999.5.06.5555, Relator: José Simpliciano Fontes de F. Fernandes, Data de Julgamento: 14/12/2005, 2ª Turma,, Data de Publicação: DJ 17/03/2006.)
 


Assim, não há dúvida de que muitos empresários irão se aproveitar deste dispositivo legal na defesa de seus interesses. Grandes debates entre a atividade empresarial e o Poder Público serão travados nos tribunais brasileiros.

Fique atento. Se este for o seu caso, procure seu advogado. Nós, da Scudeller de Almeida Advogados estamos capacitados a orientá-los em tal questão.







LIBERDADES PÚBLICAS E CALAMIDADE




LIBERDADES PÚBLICAS SOB O RISCO PANDÊMICO: LIMITES CONSTITUCIONAIS EM TEMPOS DE CALAMIDADE

Texto de autoria do Prof. Dr. Azor Lopes da Silva Júnior [1]

Presidente do Instituto Brasileiro de Segurança Pública (IBSP) 
(artigo original disponível em: http://ibsp.org.br/pensamento-socionormativo-da-seguranca-publica/liberdades-publicas-sob-o-risco-pandemico-limites-constitucionais-em-tempos-de-calamidade/)

Atento à crise mundial de saúde provocada pelo surgimento do novo Coronavírus (denominado SARS-CoV-2)[3] e cumprindo sua missão institucional de oferecer à sociedade civil e à comunidade acadêmica produção científica qualificada, sob os valores do rigor científico, da isenção ideológica e da liberdade intelectual, o Instituto Brasileiro de Segurança Pública, por dois de seus pesquisadores associados, publicou no dia 17 de março de 2020 um artigo com foco jurídico “COVID-19 (coronavírus): Lei 13.979 e Portaria Interministerial possibilitam a prisão de insurgentes?[4] e outro no campo das políticas públicas “Governança, liderança e articulação: o Brasil e as lições aprendidas sobre o Covid-19 na Europa e China[5].

Todavia, mostra-se preocupante a combinação de discursos ideológicos e populistas (de um extremo a outro, sem poupar os de centro), num ano eleitoral, por parte de agentes políticos que estão dando de ombros à Constituição da República Federativa do Brasil – a “CONSTITUIÇÃO CIDADÔ – ao violarem as regras do jogo constitucional e atentarem contra as liberdades de locomoção, de trabalho e da livre iniciativa, e que assim vem baixando normas municipais e estaduais, somente admitidas na remota hipótese de Estado de Sítio decretado por ordem do poder central, assim entendido a chefia do Poder Executivo da União e desde que com a aprovação do Congresso Nacional.

Vale transcrever o que às escâncaras garante a Constituição Federal como liberdades públicas, na forma de inalienáveis “Direitos e Garantias FUNDAMENTAIS”:
“Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: […] IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;”

“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: […] XIII – é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer; […] XV – é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens; XVI – todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente; […] LIV – ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;”

Aquilo que chamamos “regras do jogo constitucional” não deixa a descoberto a possibilidade de momentos de convulsão nacional, a quem compete decretar o Estado de Sítio e como nesses casos – e somente neles – podem ser limitadas as liberdades públicas:

“Art. 49. É da competência exclusiva do Congresso Nacional: […] IV – aprovar o estado de defesa e a intervenção federal, autorizar o estado de sítio, ou suspender qualquer uma dessas medidas;”

“Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República: […] IX – decretar o estado de defesa e o estado de sítio;”

“Art. 137. O Presidente da República pode, ouvidos o Conselho da República e o Conselho de Defesa Nacional, solicitar ao Congresso Nacional autorização para decretar o estado de sítio nos casos de: I – comoção grave de repercussão nacional ou ocorrência de fatos que comprovem a ineficácia de medida tomada durante o estado de defesa; […] Parágrafo único. O Presidente da República, ao solicitar autorização para decretar o estado de sítio ou sua prorrogação, relatará os motivos determinantes do pedido, devendo o Congresso Nacional decidir por maioria absoluta.”

“Art. 138. O decreto do estado de sítio indicará sua duração, as normas necessárias a sua execução e as garantias constitucionais que ficarão suspensas, e, depois de publicado, o Presidente da República designará o executor das medidas específicas e as áreas abrangidas. § 1º O estado de sítio, no caso do art. 137, I, não poderá ser decretado por mais de trinta dias, nem prorrogado, de cada vez, por prazo superior;”

“Art. 139. Na vigência do estado de sítio decretado com fundamento no art. 137, I, só poderão ser tomadas contra as pessoas as seguintes medidas: I – obrigação de permanência em localidade determinada; II – detenção em edifício não destinado a acusados ou condenados por crimes comuns; III – restrições relativas à inviolabilidade da correspondência, ao sigilo das comunicações, à prestação de informações e à liberdade de imprensa, radiodifusão e televisão, na forma da lei; IV – suspensão da liberdade de reunião; V – busca e apreensão em domicílio; VI – intervenção nas empresas de serviços públicos; VII – requisição de bens.”

O que não é cabível, sem que se rompa com o Estado de Direito e com o Pacto Federativo, é que os entes federados se atropelem sem sincronia e atentando não só contra o sistema jurídico, mas contra tudo o que ele busca proteger: a DEMOCRACIA, a ORDEM PÚBLICA e os DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS.

Daí porque, veja-se o que diz a Constituição da República competir a cada qual desses entes federados (União, Estados, Distrito Federal e Municípios) seja para criar normas – leis e decretos – seja para orquestrar as políticas públicas, notadamente em momentos de crise nacional (no caso, mais que isso: mundial):
“Art. 18. A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição.”

“Art. 21. Compete à União: […] V – decretar o estado de sítio, o estado de defesa e a intervenção federal; […] XII – explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão: […] c) a navegação aérea, aeroespacial e a infra-estrutura aeroportuária; d) os serviços de transporte ferroviário e aquaviário entre portos brasileiros e fronteiras nacionais, ou que transponham os limites de Estado ou Território; e) os serviços de transporte rodoviário interestadual e internacional de passageiros; f) os portos marítimos, fluviais e lacustres;”

“Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre: […] III – requisições civis e militares, em caso de iminente perigo e em tempo de guerra; […] VIII – comércio exterior e interestadual; IX – diretrizes da política nacional de transportes; X – regime dos portos, navegação lacustre, fluvial, marítima, aérea e aeroespacial; XI – trânsito e transporte;”

“Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre: […] XII – previdência social, proteção e defesa da saúde; […] § 1º No âmbito da legislação concorrente, a competência da União limitar-se-á a estabelecer normas gerais. § 2º A competência da União para legislar sobre normas gerais não exclui a competência suplementar dos Estados. § 3º Inexistindo lei federal sobre normas gerais, os Estados exercerão a competência legislativa plena, para atender a suas peculiaridades. § 4º A superveniência de lei federal sobre normas gerais suspende a eficácia da lei estadual, no que lhe for contrário.”

“Art. 25. Os Estados organizam-se e regem-se pelas Constituições e leis que adotarem, observados os princípios desta Constituição. § 1º São reservadas aos Estados as competências que não lhes sejam vedadas por esta Constituição.”

“Art. 30. Compete aos Municípios: I – legislar sobre assuntos de interesse local; II – suplementar a legislação federal e a estadual no que couber;”

A título de exemplo desse estado de coisas, no município sede do Instituto Brasileiro de Segurança Pública (São José do Rio Preto, interior de São Paulo), no dia 20 de março de 2020 é baixado o DECRETO MUNICIPAL Nº 18.559 que, entre outras coisas, por seu artigo 4º determinava textualmente que (não simplesmente recomendava, mas textualmente determinava):
“A partir de 23 de março de 2020, fica determinado: I – a suspensão de eventos no Município e das atividades dos estabelecimentos comerciais e de serviços no Município, exceto aos hospitais, farmácias e drogarias, serviços de saúde essenciais, estabelecimentos comerciais de alimentos sem consumação no local, distribuidoras e revendedoras de gás e postos de combustíveis;” (in verbis).

Não se desconhece que os municípios – e como tal esse trazido como mero exemplo entre tantos outros no país – por sua LEI ORGÂNICA DE SÃO JOSÉ DO RIO PRETO, em seu artigo 8º, XXVII, estabeleça que lhe caiba “Ordenar as atividades urbanas, fixando condições e horários para funcionamento de estabelecimentos industriais, comerciais e prestadores de serviços, observadas as normas federais e estaduais pertinentes”, mas atente-se ao nosso destaque no final deste texto normativo: “observadas as normas federais e estaduais pertinentes”.

E isso tudo fica evidente quando, em plena pandemia do COVID-19 (Coronavírus), nem mesmo o presidente da República ou o Congresso Nacional ousaram fazê-lo; a própria LEI FEDERAL Nº 13.979, DE 6 DE FEVEREIRO DE 2020[6], que dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019[7], se conteve e não exorbitou para fora dos limites constitucionais, mesmo porque, se o fizesse, sujeitaria seus autores às penas dos crimes de responsabilidade previstos na LEI Nº 1.079, DE 10 DE ABRIL DE 1950, que levam ao famigerado processo de Impeachement.

Na mesma esteira legalista, num primeiro momento também não o fez o Governo do Estado de São Paulo, quando editou o DECRETO Nº 64.862, DE 13 DE MARÇO DE 2020, que preferiu, por seu artigo 4º, deixar ao setor privado do Estado de São Paulo que ficaria “recomendada a suspensão de: I – aulas na educação básica e superior, adotada gradualmente, no que couber; II – eventos com público superior a 500 (quinhentas) pessoas” sendo adiante acrescido, pelo DECRETO Nº 64.685, de 20 de MARÇO DE 2020, do seguinte: “III – até 30 de abril de 2020, no âmbito da Região Metropolitana de São Paulo: a) shopping centers, galerias e estabelecimentos congêneres; b) academias ou centros de ginástica”.

Entretanto, entremeio à “pandemia jurídica” o MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO, por sua “Promotoria de Direitos Humanos – Área da Saúde Pública e da Inclusão Social”, ajuizou Ação Civil Pública perante o Juízo de Direito da 14ª Vara da Fazenda Pública Comarca de São Paulo (Processo nº 1015344-44.2020.8.26.0053), obtendo a decisão liminar requerida que, de logo em 24 de março de 2020 foi suspensa pelo Tribunal de Justiça (Processo nº 2055157-26.2020.8.26.0000).

Mui provavelmente, sentindo-se amparado pela decisão liminar de primeiro grau – não parece leviano supor a partir da cronologia dos fatos, normas e decisões judiciais – o governador paulista, João Doria, reedita o decreto, para agora como DECRETO Nº 64.879, de 20 DE MARÇO DE 2020[8], mas logo sobreveio a suspensão da liminar por decisão prolatada pelo Desembargador GERALDO FRANCISCO PINHEIRO FRANCO, de onde se destaca:
“Só mesmo em situações extremas, como decreto de estado de sítio (art. 137 CF), aqui não delineadas até o momento, poderá o Estado obrigar que pessoas permaneçam em localidades determinadas e que não participem de reuniões, ainda que de natureza religiosa. São hipóteses de emergência nacional, de maior gravidade do que a atual, e que, por isso mesmo, autorizam que o Estado impeça a livre mobilidade dos civis.” (São Paulo, 24 de março de 2020. Desembargador GERALDO FRANCISCO PINHEIRO FRANCO, Presidente do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo).

Desculpem-me pelo pragmatismo, aqui justificado desde já porque, logo que vencida a crise de saúde pública, inevitavelmente virão as demandas judiciais acusando os atropelos e reclamando indenizações; não deixo de ser sensível aos apelos humanitários, religiosos e éticos, mas no Estado  de Direito há “regras do jogo”, até para períodos de convulsão intestina; acima de tudo isso, não podemos retroagir na história para ter que escolher entre a vida ou a vida em liberdade.

Na “pandemia de informações” também brotou a notícia de que, do SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, o Ministro MARCO AURÉLIO teria legitimado a adoção de ações restritivas de direitos fundamentais pelos Estados e municípios; em verdade, só a má compreensão jornalística de uma decisão judicial tomada por Marco Aurélio justifica atribuir isso ao decano magistrado da mais alta corte brasileira, quando ele só fez reconhecer que a Lei Federal nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, regulamenta, em esperada sintonia federativa sob a coordenação do poder central da União Federal, a adoção de ações em todos os níveis das Unidades Federadas, notadamente para prever o isolamento e quarentena de pessoas infectadas, mas sem que isso revele quebra das regras do jogo constitucional e desrespeito às liberdades públicas:
“A cabeça do artigo 3º sinaliza, a mais não poder, a quadra vivenciada, ao referir-se ao enfrentamento da emergência de saúde pública, de importância internacional, decorrente do coronavírus. Mais do que isso, revela o endosso a atos de autoridades, no âmbito das respectivas competências, visando o isolamento, a quarentena, a restrição excepcional e temporária, conforme recomendação técnica e fundamentada da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, por rodovias, portos ou aeroportos de entrada e saída do País, bem como locomoção interestadual e intermunicipal.” (MEDIDA CAUTELAR NA AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 6.341 DISTRITO FEDERAL, Relator Ministro MARCO AURÉLIO, Brasília – residência –, 24 de março de 2020, às 10h30.).

E isto o ministro Marco Aurélio proclamou porque provocado por legítima (mas não correta) demanda de partido político: “Partido Democrático Trabalhista – PDT ajuizou ação direta com a finalidade de ver declarada a incompatibilidade parcial, com a Constituição Federal, da Medida Provisória nº 926, de 20 de março de 2020, relativamente às alterações promovidas no artigo 3º, cabeça, incisos I, II e VI, e parágrafos 8º, 9º, 10 e 11, da Lei federal nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020. Eis o teor dos preceitos impugnados: Art. 3º Para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus, as autoridades poderão adotar, no âmbito de suas competências, dentre outras, as seguintes medidas: I – isolamento; II – quarentena […] VI – restrição excepcional e temporária, conforme recomendação técnica e fundamentada da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, por rodovias, portos ou aeroportos de: a) entrada e saída do País; b) locomoção interestadual e intermunicipal; […] § 8º As medidas previstas neste artigo, quando adotadas, deverão resguardar o exercício e o funcionamento de serviços públicos e atividades essenciais. § 9º O Presidente da República disporá, mediante decreto, sobre os serviços públicos e atividades essenciais a que se referem o § 8º. § 10. As medidas a que se referem os incisos I, II e VI do caput, quando afetarem a execução de serviços públicos e atividades essenciais, inclusive as reguladas, concedidas ou autorizadas, somente poderão ser adotadas em ato específico e desde que em articulação prévia com o órgão regulador ou o Poder concedente ou autorizador.

De mais a mais, o risco de ruptura com essas regras do jogo põe em risco não só as liberdades públicas, mas também a integridade nacional e a própria federação; nessas horas, quando cidadãos legitimamente se insurgirem a tais ilegalidades e abusos, em atos de desobediência civil, os governantes abusadores chamarão as forças de segurança a completarem os desmandos, e nesse momento de caos, estaremos em meio a uma revolução onde restará às Forças Armadas para a garantia da lei e da ordem em defesa do Estado e as instituições democráticas (quem sabe, na retórica político-partidária então dirão: se repete o prenunciado golpe de Estado…).
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL
DA DEFESA DO ESTADO E DAS INSTITUIÇÕES DEMOCRÁTICAS.
Art. 142. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.”
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Notas
[1] Pós-doutorando, pesquisador de “Hermenêutica e Positivismo Jurídico” pela Unesp, Doutor em Sociologia (Unesp), Mestre em Direito (Universidade de Franca) e Especialista em Direito (Unesp). Advogado, Professor Universitário (UNIRP), Coronel da Polícia Militar do Estado de São Paulo (reserva remunerada) e Presidente do Instituto Brasileiro de Segurança Pública (ibsp.org.br). Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/6088271460892546.
[2] Disponível em: https://dlnews.com.br/colunistas?id=249/municipio-estado-e-uniao-podem-impedir-o-livre-exercicio-da-atividade-economica
[3] Recomendamos a leitura do artigo: LANA, Raquel Martins et al . Emergência do novo coronavírus (SARS-CoV-2) e o papel de uma vigilância nacional em saúde oportuna e efetiva. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 36, n. 3, e00019620, 2020. Available from . access on  25  Mar.  2020.  Epub Mar 13, 2020.  https://doi.org/10.1590/0102-311×00019620.
[4] Disponível em: http://ibsp.org.br/politicas-publicas/covid-19-coronavirus-lei-13-979-e-portaria-interministerial-possibilitam-a-prisao-de-insurgentes/
[5] Disponível em: http://ibsp.org.br/pensamento-socionormativo-da-seguranca-publica/governanca-lideranca-e-articulacao-o-brasil-e-as-licoes-aprendidas-sobre-o-covid-19-na-europa-e-china/
[6] LEI Nº 13.979, DE 6 DE FEVEREIRO DE 2020, que dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019. (Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2020/Lei/L13979.htm).
[7] A Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, além da possibilidade de isolamento e quarentena de pessoas, surge a de determinação de realização compulsória de exames médicos, testes laboratoriais, coleta de amostras clínicas, vacinação e outras medidas profiláticas ou tratamentos médicos específicos, além de estudo ou investigação epidemiológica, exumação, necropsia, cremação e manejo de cadáver e restrição excepcional e temporária de entrada e saída do País, conforme recomendação técnica e fundamentada da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), por rodovias, portos ou aeroportos. A lei define o isolamento como: “separação de pessoas doentes ou contaminadas, ou de bagagens, meios de transporte, mercadorias ou encomendas postais afetadas, de outros, de maneira a evitar a contaminação ou a propagação do coronavírus”; já a quarentena: “restrição de atividades ou separação de pessoas suspeitas de contaminação das pessoas que não estejam doentes, ou de bagagens, contêineres, animais, meios de transporte ou mercadorias suspeitos de contaminação, de maneira a evitar a possível contaminação ou a propagação do coronavírus”.
[8] Disponível em: http://diariooficial.imprensaoficial.com.br/nav_v5/index.asp?c=4&e=20200321&p=1