sexta-feira, 21 de junho de 2013

Políticas Públicas ?



Malvasi [1] inicia explicando que “a violência é um sintoma do mal-estar nas relações entre os seres humanos”. Trata-se de
[...] um fenômeno complexo, que envolve diversas dimensões da experiência humana. É multideterminado: para sua compreensão é necessário considerar aspectos históricos, econômicos, sociais, culturais, psicossociais; em determinadas circunstâncias, outros fatores peculiares, como os religiosos e demográficos [...]

Sendo uma complexa questão, faz-se necessário para sua discussão, de uma fundamentação conceitual. Assim, me aproprio dos ensinamentos de Pino [2] que trazem a lume, “no pensamento moderno, que a violência evoca a ideia de desordem: desordem da razão, desordem moral e desordem social, as quais têm em comum o fato de fazerem do indivíduo a origem e a causa dessas desordens”. Nesta seara, este pensamento se alinha com a possibilidade apresentada por Misse [3], que de forma transversal, trata da questão da criminalização preferencial ao refletir sobre a questão de mercados legais, informais e seus entrelaçamentos.

Na busca de classificar teoricamente a expressão violência, Marin [4] destaca a existência da violência branca como um “poder violento bem sucedido e que não é percebido como violento, ou seja, uma situação na qual a submissão é obtida sem que haja necessidade de um poder visível e localizado para exercê-lo”. No mesmo sentido, o mesmo autor aponta para uma violência primária, ou seja, “a que impõe ao outro uma determinação antes mesmo desse outro poder expressar suas vontades ou necessidades” [5]. Misse [6] acrescenta, numa análise social, que a questão da violência é percebida não em função da criminalização de determinados fatos sociais, mas é considerada a partir dos efeitos que são produzidos na comunidade. Este fenômeno foi batizado por polissemia da noção, onde ações positivadas pelo direito podem ser percebidas pela comunidade como uma ação do cotidiano, sem nenhuma violência aparente.

Diante deste quadro sintético acerca da conceituação de violência, destaco posicionamento de Adorno [7] no sentido de que o adolescente pode figurar no polo passivo ou ativo deste processo, ou seja, pode ser vítima ou autor de violência. Assim, encaminhando para o mesmo sentido de minha pesquisa nesta pós-graduação, concentro minha resposta na análise dos elementos preditivos da violência que podem colocar o adolescente no polo ativo, ou seja, na prática de atos infracionais (não desprezando, pela sua importância, eventuais ações destinadas a evitar a progressão do adolescente na delinquência juvenil).

Neste raciocínio, apresento recorte de esquema formulado por Assis [8] que aponta elementos preditivos da violência ligados a condições estruturais de onde vive o adolescente, bem como a eventuais falhas das instituições de controle (disciplinares) que já foram assinaladas por Foucault [9]. Alguns desses elementos podem ser (e foram) ferrenhamente criticados, como é o caso da “influência de amigos” que se aproxima da questão da resiliência apresentada por alguns teóricos [10].



Do modelo apresentado por Assis, destacarei, inicialmente, as condições estruturais. Coimbra [11] esclarece que o movimento higienista do século XX afirmava que os locais públicos serviam como “escola do mal”:

No discurso médico da época, os locais públicos vão sendo produzidos como a ‘grande escola do mal’ onde estariam os ‘menores’, a ‘infância em perigo’ – aqueles pobres que convivendo com os que já delinquiram – inevitavelmente constituiriam a ‘infância perigosa’.
[...]
Os espaços públicos, por todo o século XX, passam a ser desqualificados, percebidos como ameaçadores e que, portanto, precisariam ser evitados.
[...]
Os miseráveis expulsos do centro das cidades e de suas zonas nobres vão para os subúrbios e periferias: para os territórios dos pobres, no dizer de Santos (1994).

Em crítica, Coimbra busca desconstruir este posicionamento de que a

[...] rua deva ser vista como ameaça a ordem, local de barbárie, do promíscuo, das doenças, do tumulto, do perigo, da criminalidade e seus habitantes, identificados com o atraso, a sujeira, a doença, a feiura e a barbárie precisam ser afastados e evitados, pois são fontes de todos os malefícios, vícios e degenerações” [12]. Trata-se, assim, da “morte das ruas” [13].

Outrossim, apenas no imaginário de determinadas pessoas, é possível compreender que a pobreza seja sinônimo de criminalidade. Entretanto não há como negar que parte dos adolescentes que se apresentam em conflito com a lei moram e vivem neste cenário. Zaluar adverte [14]:

Justificar a criminalidade violenta de uma pequena parcela dos jovens pobres é desviar a atenção dos que deveriam estar sendo controlados: os que fazem fortuna traficando drogas e armas, por um lado, e os que desviam as verbas que deveriam ser destinadas às políticas públicas que educariam esses jovens para uma sociabilidade positiva e para os direitos positivos de participação.

Malvasi [15] ainda ensina:

Com a dificuldade do acesso ao emprego, ganham centralidade o consumo e o lazer na busca de status, dignidade e direitos civis; existe um forte desejo de “ser alguém” e de “pertencer”. Ao mesmo tempo, a construção social das imagens relativas ao trabalho associa simbolicamente os jovens pobres a lazers urbanos, como pichação e prática do skate.
[...]
Quando, porém, jovens não conseguem situar-se nem como trabalhadores nem como consumidores, passam a viver uma situação crítica nessa fase da vida: a invisibilidade pública.

Nesta primeira perspectiva, não pode o Estado permanecer passivo. Deve ele ser substituído pelo Estado ativo, editando políticas públicas que propiciem o respeito a dignidade da pessoa humana. Zaluar [16] adverte “que as políticas públicas deveriam se ocupar de prevenir a exclusão mais do que reinserir os excluídos; de criar uma sociabilidade positiva mais do que remediar a negativa, embora no quadro de crise atual o oposto tenha que ocorrer na política de reinserção”. Na política de reinserção se “remedia o que não se preveniu a tempo” [17].

Por outro lado, uma política pública direcionada ao adolescente deve observar alguns princípios importantes (além dos princípios constitucionais explícitos e dos implícitos na doutrina), dos quais devo destacar:

1)    Reconhecimento da dignidade e de direitos inalienáveis;
2)    Equidade;
3)    Integralidade;
4)    Reconhecimento da universalidade dos direitos da infância e da juventude;
5)    Autonomia;
6)    Inclusão social;
7)    Respeitabilidade do direito à convivência familiar e comunitária.

Zaluar [18], brilhantemente, explica que as “políticas sociais devem ser implementadas não porque os pobres constituam um perigo permanente à segurança, não porque venham a ser as classes mais perigosas, mas porque um país democrático e justo não pode existir sem tais políticas”. Desta forma entendo adequados, embora insuficientes, as políticas sociais adotadas pelo Estado Brasileiro que dizem respeito ao programa de renda mínima, como por exemplo, a bolsa escola, a bolsa família, o programa minha casa minha vida e o próprio imposto de renda sobre pessoa física.

Não menos importante que o combate a pobreza, mas numa visão mais ampla, aparenta-me como um segundo elemento preditivo da violência juvenil a questão da inobservância dos direitos humanos das crianças e adolescentes. Adorno [19] explica que “crianças e adolescentes são titulares de direitos: direito a existência digna, à saúde, à educação, ao lazer, ao trabalho e sobretudo ao amparo jurídico” (sic). Continua o mesmo autor [20]:

A associação entre adolescência e criminalidade não é inquietação exclusivamente própria de sociedades com acentuadas desigualdades sociais em que as políticas sociais governamentais, ainda que se esforcem por minimizá-las, não logram assegurar direitos sociais fundamentais para grandes parcelas da população urbana ou rural, cujo ônus recai preferencialmente sobre crianças e adolescentes.

O desrespeito aos direitos humanos da criança, infelizmente, se inicia com a corrupção policial [21]. Zaluar [22] explica de forma conveniente:

A corrupção policial [...] garantiu a impunidade dos responsáveis por atividades ilegais e discriminatórias contra os jovens, especialmente os mais pobres, que o poder público deveria defender, tratando-os em centros de saúde e educando-os preventivamente nas escolas.

Ainda na seara dos direitos humanos, surge a questão do trabalho digno.

Como políticas públicas a serem perpetradas pelo Estado, parece-me necessário uma atuação mais efetiva do Ministério Público, haja vista ser ele o “fiscal da lei”. Outra providência, não menos importante, é a conscientização dos policiais (civis ou militares) de que devem atuar como promotores de direitos humanos (isto não significa que devem ser permissivos com a prática criminal). Outra medida, encarnada em política pública, é a oferta de emprego para o jovem, como ocorre com o programa “Primeiro emprego” e como ocorreu na Polícia Militar Paulista com o “Soldado Temporário”.

Ainda é necessário informar a existência dos programas de governo Aprendiz Paulista, Emprega São Paulo e o próprio PAT – Posto de Atendimento ao Trabalhador (que ajuda na recolocação profissional).

Na área da cultura lembro a existência dos programas de governo paulista: Virada Cultural, Circuito Cultural Paulista e Oficinas Culturais. Na educação temos o ProUni, o FIES e o próprio Exame Nacional para Certificação de Jovens e Adultos. No esporte temos o Bolsa talento Esportivo e o Centro de Excelência Esportiva.

Entretanto, isto não basta. Zaluar [23] defende que “as redes locais de reciprocidade positiva devem ser restauradas” para que valores sociais e humanos perdidos sejam recuperados e fortalecidos.

O terceiro elemento preditivo desta análise, mas que não exaure as possibilidades de facilitar a conduta infracional, por mim destacado, é a família. Assis [24] destaca a família como elemento de fundamental importância preventiva:

A importância da família como fator causal para a delinquência se dá na medida do maior ou menor controle, direto e indireto das ações dos jovens. Os familiares atuam diretamente estabelecendo horários, regras de convivência, punições e recompensas. Agem de maneira indireta ao criarem uma forte ligação pais/filhos, capaz de dissuadir o jovem de cometer atos infracionais. A imagem da família atuaria como censura, provocando-lhe vergonha ou desapontamento. Chesnais (1996), importante historiador francês que estuda a presença da violência nas sociedades ocidentais, afirmou que, no Brasil, um dos fatores desencadeantes da delinquência é o fraco controle sobre os jovens exercido por instituições como família, igreja e escola.

Embora já delineada por Foucault como uma instituição disciplinar, a família vem sendo apontada como fator que pode realmente evitar o ingresso do adolescente no “mundo do crime”. Zaluar [25], neste mesmo sentido, aponta que o “controle” da adolescência precisa ser feito também pelos pais (“quando as figuras paternas e maternas não mais oferecem modelos nem são capazes de controlar seus filhos”). A autora ainda afirma que:

[...] sem dúvida, a rapidez das mudanças na organização familiar, nas relações sexuais, nos valores que faziam do trabalho a referência mais importante para amplas camadas da população, agora substituídos pelos valores associados ao consumo, especialmente o consumo de ‘estilo’ mais caro e menor familiar provocou o que se poderia chamar de anomia social difusa.

Misse [26], em comentário sobre a violência do “movimento carioca”, diante da fragilidade de algumas instituições, explica:

A continuidade entre os últimos “malandros” e “marginais” dos anos 1950 e 1960 e os atuais “vagabundos” deve ser buscada nas relações de vizinhança e parentesco, mas também deve-se a fama que os primeiros obtinham junto aos adolescentes (“pivetes” e pequenos “marginais) nascidos nos anos 1950 e 1960, que buscaram imitar sua “valentia”, sua “astúcia” ou que se transformaram em referência quanto ao estilo de vida.

A família é de extrema importância na questão social. Kliksberg [27]

A família é uma das criações mais extraordinárias do gênero humano. A história tem demonstrado categoricamente que a família é a resposta natural a características básicas do homem como ser genérico. É o âmbito no qual os seres humanos obtêm elementos fundamentais para uma vida produtiva e realizadora, valores éticos, modelos de conduta, conteúdos educativos, proteção nos primeiros anos, pautas orientadoras, calor humano, solidariedade incondicional. É, ao mesmo tempo, a base de uma sociedade democrática, criativa, com rosto humano. (grifo nosso)

É preciso revitalizar a família, antes que seja tarde [28]. Infelizmente, não vislumbrei programas direcionados a família e que pudessem realmente fortalecer esta instituição. Não encontrei nenhum programa, nem mesmo no rol de políticas públicas ligadas a juventude do Governo Federal.

Finalizando, aproprio-me mais uma vez de Malvasi [29]:

Adolescentes e jovens criminalizados manifestam o ressentimento e a aflição que vivenciam em suas performances e narrativas de sofrimento. Caso os programas e as políticas públicas voltados para eles não atentem nem interpretem o sofrimento e a rebeldia que manifestam em termos de conflito social, continuarão a fazer uma leitura estritamente normativa para explicar o ato infracional.

Neste campo, há muito a fazer, pois o “estranho” não pode ser, simplesmente, encarcerado [30].



[1] MALVASI, ob cit., p. 41.
[2] PINO, Angel. Violência, educação e sociedade: um olhar sobre o Brasil contemporâneo. Educ. Soc., Campinas, vol. 28, n. 100 - Especial, p. 763-785, out. 2007. Disponível em
[3] MISSE, Michel. Mercados ilegais, redes de proteção e organização local do crime no Rio de Janeiro. Artigo. Revista de Estudos Avançados, n. 21, 2007, p. 139.
[4] MARIN, Isabel da Silva Kahn. Violências. São Paulo: Escuta, 2002.
[5] Idem.
[6] MISSE, ob cit., p. 151.
[7] ADORNO, Sergio. O adolescente e as mudanças da criminalidade urbana. São Paulo em Perspectiva, 1999.
[8] ASSIS, Simone Gonçalves de. Traçando caminhos em uma sociedade violenta: a vida de jovens infratores e de seus irmãos não-infratores. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 1999.
[9] Cecília Maria Bouças Coimbra, em artigo intitulado “Os especialistas da infância e da juventude: produzindo verdades competentes”, 2001, destaca Foucault (1988) assinalando que “a partir do capitalismo industrial, quando emergem as sociedades disciplinares, as classes dominantes passam não mais, como antes, a se preocupar com as infrações às normas cometidas pelos sujeitos, mas sim com o que eles poderiam vir a infligir. Ou seja, o controle não será somente sobre o que se é, o que se faz, mas também sobre o que se poderá a vir a ser, vir a fazer; sobre as virtualidades, portanto”.
[10] ASSIS, ob cit.
[11] COIMBRA, Cecília Maria Bouças. Os especialistas da infância e da juventude: produzindo verdades competentes. Revista Paidéia, p. 86. Artigo. 2001. Disponível em: <>. Acesso em: 04 jun. 2013.
[12] Ibidem.
[13] JOSEPHSON, S. apud COIMBRA, ob cit., p. 86.
[14] ZALUAR, Alba. Exclusão e políticas públicas: dilemas teóricos e alternativas políticas. Revista Brasileira de Ciências Sociais. Vol. 12, n. 35. São Paulo, fev. 1997, p. 7.
[15] MALVASI, ob cit., p. 59.
[16] ZALUAR, ob cit., p. 3.
[17] Ibidem.
[18] Idem, p. 7.
[19] ADORNO, ob cit.
[20] Ibidem.
[21] Corrupção policial utilizada neste texto em sentido amplo e não jurídico (com respaldo na lei de improbidade administrativa ou de responsabilidade).
[22] ZALUAR, ob cit., p. 9.
[23] Idem, p. 11.
[24] ASSIS, ob cit.
[25] ZALUAR, ob cit., p. 8.
[26] MISSE, ob cit., p. 150.
[27] KLIKSBERG, Bernardo. O desafio da exclusão: para uma gestão social eficiente. São Paulo: FUNDAP, 1997, p. 46.
[28] Ibidem.
[29] MALVASI, ob cit., p. 68.
[30] Idem, p. 70.

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